domingo, 10 de março de 2013

Novilingua para que se desentendam


 

Ela entrou porta adentro dando passadas firmes contra o assoalho de tábuas largas.
- Bom dia!
Todos responderam com continências, exceto um rapazola que acabara de ser incorporado. Pretendendo ser gentil e desejando subir na carreira, ele a cumprimentou:
- Bom dia, senhora gerente.
Ela fulminou o rapazola e disse:
- Gerente, não. Gerenta. Com a, não com o. Entendido, rapaz? Gerenta!
A partir desse dia o rapaz, que aspirava chegar à alguma diretoria, começou a ser apresentado a outras mudanças ainda mais substanciais geradas pelo princípio segundo o qual todos os tratamentos mudariam de final o para a. Questão de gênero. É bem verdade que as mudanças só conseguiram atingir aqueles que eram funcionários da empresa ou que trabalhavam em organismos dependentes dela – quem era de outras empresas, nacionais ou estrangeiras, ou quem não dependia de seus favores, nem dava bola.
Seja como for, as coisas evoluíram. Certo dia, o rapaz, aplicado e obediente como sempre, entrou na sala da gerenta e a encontrou eufórica com as grandes transformações literárias e linguísticas que vinha implantando. Ele pediu licença e disse:
- Eles chegaram, senhora gerente.
Ela se levantou da cadeira, furiosa:
- Eles?!
- Eles, disse o rapaz, percebendo pelo tom da gerenta que cometera alguma besteira; emendou: Os novos funcionários.
- Elas não chegaram, então?
- Não... quer dizer, sim, senhora gerente. Elas também chegaram.
- Então não são “eles”, que é masculino.
- Mas... – o rapaz engasgou.
Ela se aproximou dele e disse:
- Aprenda mais essa, meu rapaz. A dominação é tamanha que elas ficam escondidas atrás do eles. Eles acabam predominando. Ao chamar o conjunto de funcionários de eles você está dando maior peso ao masculino. E o feminino, onde fica?
O rapaz, talvez pela pouca idade, não soube dizer onde o feminino ficava.
- Pois fica eclipsado, declarou a gerenta.
- Eclipsada, corrigiu de imediato o rapaz, que era muito hábil em adulações e arriscando levar mais uma bronca.
Ela o olhou irritada, mas concordou:
- Boa observação. O elas fica eclipsada.
- Não seria “a elas fica eclipsada”, senhora gerenta?
O rapaz lhe pareceu demasiado afoito. Mas estava certo, o patife. Ou não? O elas? A elas?
Ergueu um dedo no ar e declarou:
- Elus.
- O que é isso, senhora?
- O novo plural. Elas, eles, elus. Elas para designar agrupamentos femininos. Eles para agrupamentos masculinos. E elus para designar reunião de masculino e feminino. Portanto, fica decidido: “Elus chegaram”. Correto?
- Ou correta, senhora. Afinal, a correção tem sido mais feminina do que masculina, não lhe parece? – o rapazola era insaciável em seu empenho de agradar.
- Não me confunda, rapaz. Correção pode ser também uma coisa masculina, ainda que raramente.
- Ou coisas masculinos, senhora? Quer dizer... acho que... Bom, se decidirmos que será coisas masculinos, devemos dizer coisos. Coisos masculinos.
E ali estavam os dois à beira de inventar uma nova língua. Seria um evento notável diante do qual todo o mundo civilizado se curvaria.
Empolgada, a gerente mandou o rapaz apanhar o notebook e ditou o primeiro texto daquela língua recém-inventada:
“Elus chegaram. U grupu (já que inclui mulheres e homens) era formadu por três homens e três mulheres...
- Não seria o caso de colocar as mulheres antes, senhora?
A gerenta deu mostras de se irritar com a interrupção, mas corrigiu-se:
“...formado por três mulheres e três homens. Elus traziam algumus coisus. Umas femininas: duas malas, uma pasta, uma bandeira. E coisos masculinos: três chapéus, dois camisos e um caneto. No entanto, por uma dessos coisos masculinos, os homens haviam esquecido o principal, os relatórios. (Relatório é coiso masculino, riu a gerenta pela primeira vez naquele dia.) Elus ficaram muito atrapalhados, mas por culpa – ela se perguntou: por que culpa deve ser feminina? – e emendou: mas por culpo deles.”
Terminado esse ensaio de clara e definitiva (clara e definitiva são coisas femininas, como se sabe) separação e determinação de gênero, elus – a gerente e o esforçado rapaz – perceberam que não havia como continuar. Melhor seria fazer uso de duas línguas, não de uma só que tentasse superar as ambiguidades da língua tradicional. Uma língua para mulheres e outra para homens. Seria melhor. Trabalhariam nisso. Duas línguas.
- Mas perguntou o rapaz, temeroso e perplexo (que são, diga-se, algumos característicos masculinos), isso não causaria uma grande confusão entre homens e mulheres?
A gerenta deu com a mão no ar:
- Ninguém vai notar. Elus nunca se entenderam mesmo.

Um comentário:

  1. Fera ironia, Roberto! Fera e vera! Texto crítico em todos os sentidos, que deveria ser conhecido por professores, por gramáticos e por linguistas, pricipalmente pelos linguistas que tentam justificar por todos os meios e com todos os argumentos disponíveis essa aberração autoritária da nova gramadílmica. Coisa mais ridícula. Antonio Manoel

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