Um amigo telefona do
outro lado do oceano Atlântico para comunicar que, segundo seu médico, está
ficando surdo. É verdade que não anunciava nenhuma novidade – já havíamos
conversado a respeito – mas mesmo assim falou num tom melancólico de quem
espera algum conforto.
Não me dei por achado.
Disse a ele:
- Comemore. Com o mundo
do jeito que está, com tanta porcaria sonora solta no ar, ficar surdo é uma bênção.
A surdez vai te livrar de chateações, inclusive das novas duplas sertanejas,
dos cantores românticos, dos discursos políticos, das pregações evangélicas. Portanto,
fique feliz!
Acho que fiz bem, pois ele
deu uma gargalhada estrondosa. Num mundo abarrotado de ruídos endoidecidos, isso
de surdez pode ser útil, concluímos.
Há muitos anos
trabalhei na Aliança Francesa como bibliotecário. Jovem, tímido e ingênuo,
fiquei comovido certa ocasião com um senhor francês, arquiteto, que surgia por
ali a cada três dias ao lado de sua mulher. Ela falava alto, tinha opiniões
constrangedoras sobre todos os assuntos, dava risadas sarcásticas, convertendo
o mundo a sua volta num pandemônio. Ele, quieto e meio sonso, era surdo.
Fiquei triste com a
surdez daquele homem. Entrava em silêncio, cumprimentava com um leve movimento
de cabeça e ia bisbilhotar as estantes da biblioteca. Remexia nos livros,
sempre achava um volume de poemas – amava Baudelaire e Rimbaud – e ficava a um
canto lendo poemas enquanto sua mulher seguia em sua missão ensurdecedora de
falar pelos cotovelos.
Seria um homem triste.
Triste pela surdez, pelo isolamento do mundo, mas me parecia ter uma alma de
poeta. Até que certo dia, quando eu também folheava um livro, ele se aproximou
de mim. Fiquei tenso, pois não imaginava como conversar com um surdo, ainda
mais em francês. Mas ele sorriu e, com voz calma, me perguntou o que estava
lendo. Respondi que relia – tentando decorar – o poema de Verlaine, Chanson d’automne, que até hoje
considero o mais perfeito da literatura universal.
Ele se empolgou e me
deu uma aula a respeito de Verlaine, insinuando educadamente que eu já saberia
de tudo aquilo que estava me dizendo. Eu não sabia, é claro. Fiquei pasmo, não
só com seu conhecimento de Verlaine, mas com o fato de que falava com elegância
e ouvia perfeitamente.
Assim ficamos num papo
tranquilo, só atrapalhado pelo meu sofrível francês da época, que era capenga.
Aliás, continua capenga.
Foi quando ouvi a voz
de trovão de sua mulher. Atropelou nossa conversa sem cerimônia e disse que já
estava na hora.
Ele colocou a mão no
ouvido direito e perguntou:
- O que disse?
Ela subiu o tom:
- Vamos embora!
Ele me olhou, sorriu e,
com um sinal, deixou claro que voltaríamos a conversar. E saiu, como se diria
em outras épocas, à francesa.
Só então fui descobrir
o que todos ali na Aliança já sabiam. O triste arquiteto só era surdo quando
sua mulher estava por perto. Escutava perfeitamente quando queria e era surdo
ao que ela dizia, com o que mantinha a alma leve para se dedicar a seus poemas
e projetos.
Era, desta forma, um
homem feliz. O que é raro.
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