Lá vamos nós esperando inaugurar
um ano novo com o pé direito. Também com o esquerdo, lembro, pois somos
criaturas bípedes. Equilíbrio, portanto. Dois pés no chão e a cabeça nas nuvens
é boa dosagem. Os pés no chão nos situam no presente e, com a cabeça nos ares,
se esvoeja entre passado e futuro, lembranças e projetos, empregando um verbo
pouco usado e bastante expressivo, esvoejar.
Vejamos o que esse 2014
nos oferece como cardápio, além do carnaval, momento em que o ano anterior
termina e o seguinte começa. Iniciemos, portanto, depois do carnaval.
Teremos a copa do mundo
da FIFA, não se sabe se com o padrão de mesmo nome.
Confesso meus temores.
Eu era criança demais em 1950 para saber o que se passava no Maracanã no dia 16
de julho. Mas cresci assombrado com os temíveis uruguaios e aquele gol no
último minuto feito pelo Ghiggia. Ghiggia e Obdúlio Varela, El Negro Jefe, passaram a ocupar no meu
imaginário o lugar de carrascos. Revi milhares de vezes o gol. Fotografado,
narrado, filmado, nos cines jornais, na televisão e em filmes. Uma hecatombe.
Com o tempo, fui
entender que Ghiggia não era um traidor, mas um herói do outro lado e que
fizera o que tinha que fazer: meteu a bola ali onde Barbosa, nosso goleiro, não
poderia alcançar. A depressão nacional, no entanto, escolheu Barbosa como
culpado, o que fez com que predominasse durante décadas, nesse país pouco
afeito a refletir sobre seu racismo, o mito de que negros não são bons
goleiros. Foi preciso aparecer o Dida, nos anos 1990, para que essa bobagem
fosse vencida.
Pois bem, estamos em julho
de 2014. O que acontecerá? Temos a obrigação de vencer, dizem todos. Eu fico
num pé só, oscilando. O futebol brasileiro sofre de um grande defeito, o narcisismo.
Do complexo de vira-latas de que falava Nelson Rodrigues, passamos para o
extremo oposto. Diz-se que o Brasil joga o melhor futebol do mundo, que a
seleção é invencível em casa, que nossos jogadores são superiores.
É o narcisismo.
Enquanto não brasileiros suam sangue até o último minuto da partida, distribuindo
botinadas e carrinhos para todos os lados, deslocando-se para receber a bola,
os brasileiros, confiantes em sua fantasiosa habilidade, esperam que a bola
venha a seus pés.
Um leitor mais atento
do que eu advertirá que não foi isso que ocorreu na Copa das Confederações.
Certo. Pois é assim que é preciso jogar. Como dizia João Saldanha, jogador deve
disputar a bola como quem disputa um prato de comida. Faremos isso? Ou, como em
1950, acharemos possível ganhar na véspera?
Como alerta, vale
lembrar que Ghiggia tinha a mesma altura de Messi, 1,69 m. É bom ficar de olho
nos baixinhos, sempre decisivos no futebol.
Terminada a copa,
teremos as eleições. Há quem pense ganhar na véspera. O grupo da máquina
governamental e o grupo do alpinismo na indignação popular de junho. É bom
ficar de olho. Um erro, tanto na copa quanto nas eleições, se prolonga pelo
menos por quatro anos. E, sendo erro grave, pode virar hecatombe com décadas de
lamentações.
Dois pés no chão,
portanto. E cabeça a esvoejar.
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