Era um dia como outro qualquer.
Eu chegava à UFPR para dar aulas no curso de Filosofia. 1976. Governo de
Ernesto Geisel. Não se sabia se o pior já acontecera ou se ainda estava por
vir. No ar havia cansaço, doze anos após o golpe de 1964. No pátio, passei pelo
busto do ex-reitor – o mesmo que fora arrancado em 1968 e arrastado pela rua
XV, quando a Reitoria fora invadida pelos estudantes. Subi as escadarias e
peguei o elevador. Um dia como outro qualquer.
Quando cheguei ao
departamento de Filosofia, normalmente deserto naquele horário, encontrei frei
Raimundo Vier, chefe do departamento, que havia sido meu professor na PUC e era
agora meu colega de magistério na UFPR.
Frei Raimundo era um
homem do século XIII que se perdera no século XX. Tenso, ereto, sério, terno
preto, carregando uma pasta e uma enorme competência como professor. Foi também
um excelente tradutor – é elogiadíssima a tradução que fez da História da Filosofia Cristã, de Étienne
Gilson. Dava aulas que, para os padrões circenses mais tarde implantados pelos
cursinhos e comunicadores caricatos, seriam julgadas monótonas. Plantava-se na
frente da classe, raramente se deslocada de um lado para outro, mais raramente
ainda usava o quadro negro – apenas para escrever alguma coisa em
grego. Segurava na mão um arquivo com suas anotações. E falava.
Tinha uma voz grave,
forte, máscula, e conseguia colocar nela uns acentos de orador. Sabia como usar
as ênfases, os silêncios, e se aventurava a contar piadas e anedotas sobre os
filósofos gregos. As piadas não tinham muita graça, mas os causos sobre os filósofos
eram divertidos.
Mas era um homem do
século XIII. Várias vezes o observei na cantina, onde tomava o café da manhã –
média e um pão com manteiga. Sentava-se numa banqueta, colocava a pasta no chão
e tomava o café seguindo um ritual litúrgico. Sua serenidade só era prejudicada
por um ligeiro tremor das mãos, que derramava café no pires que ele erguia junto
com a xícara. Terminado o pão com manteiga, ele depositava a xícara no balcão,
apanhava o pires e, como se vertesse um cálice sagrado, bebia o café nele derramado.
E saía para dar aulas
Pois ali estava ele.
Mas não parecia o mesmo. Estava inquieto. Depois de outros rodeios, disse que
precisava falar comigo.
Esperei. Ele explicou,
constrangido:
- Recebi um comunicado
de que seu contrato não pode ser renovado.
Eu já lecionara no ano
anterior e o contrato era renovado anualmente. Estávamos talvez em maio e, é
claro, não recebera salários naquele ano, o que era normal na época.
Ele acrescentou que a AESI
(Assessoria Especial de Segurança Interna), um órgão de informações que
funcionava dentro na UFPR, ligado diretamente ao SNI
(Serviço Nacional de Segurança) o avisara de que havia problemas com minha
contratação.
Já não parecia um dia
qualquer. A tal AESI funcionava numa saleta
ao lado da reitoria e, sabíamos, tinha poderes maiores do que o reitor: era um
setor de triagem ideológica. O ocupante da sala tinha poderes de avaliar se tal
professor poderia lecionar ou não, se era esquerdista, marxista, se pregava a
revolução ou o terrorismo, além de outras paranoias alimentadas pelos milicos na
época.
A respeito desse
funcionário sabíamos apenas que fora bedel da faculdade de Direito. Além disso,
seu currículo incluía um gestual autoritário e um ar zombeteiro. E um carro
esporte GM
que tinha uma vaga reservada no pátio. Fora o GM,
tudo tinha péssimo nível.
Perguntei a Frei
Raimundo o que eu deveria fazer. Ele me disse, candidamente, que não fazia
ideia, mas que iria comigo à AESI para assegurar
que nada sabia que me desabonasse.
Marcada a reunião, lá
fomos nós.
A conversa foi seca, de
caserna. O ex-bedel mal ouviu os argumentos de frei Raimundo – alegou que os
fatos que pesavam contra mim eram de outra época, motivo pelo qual o frei os
desconhecia. Perguntei então que fatos seriam, de que local e data. O ex-bedel
disse que conversaríamos sobre isso noutro dia. Antes precisava de alguns
documentos meus. E, me passando uma folha de caderno, disse:
- Anote.
Anotei os documentos
exigidos que ele ditava lendo um papel que tinha nas mãos. Ao terminar, acionou
uma maquineta no canto da mesa, que parecia um apontador de lápis gigante,
inseriu o papel numa fenda e apertou um botão. De imediato o papel foi reduzido
a fiapos. Estávamos sendo apresentados, frei Raimundo e eu, a um instrumento
típico da época: o triturador de papéis que comprometiam a segurança.
Voltei àquela sala
outras vezes, mas nada se resolvia. O tipo me pediu outros documentos, todos
inúteis, e jamais respondeu a pergunta que lhe fiz várias vezes:
- Do que me acusam?
Eu havia lido Kafka.
Ele, certamente, não, mas desempenhava o papel como só Kafka imaginaria.
- Não tenho que lhe dar
essa resposta.
Eu, ingênuo, insistia:
- Se há uma problema, me
diga, para que eu possa explicar. É simples.
Não era. Ele dizia:
- Não preciso dizer,
pois o senhor sabe o que fez. O senhor é que tem que dizer.
- Dizer o que?
- O que fez.
- Quando e onde?
- Não sei. O senhor
sabe.
- Eu não sei.
- Eu também não.
- Então, do que me
acusam?
Kafka puro. Ele
encerrou a conversa dizendo que, em função das apurações que fizera, o contrato
não sairia. E, abrindo uma pasta com os documentos que eu lhe entregara, os enfiou
um a um no triturador.
- É só isso, me despachou,
observando encantado os documentos se transformarem em picadinho de papel.
Não havia o que fazer.
Era 1976. E não era um dia qualquer. Quem não viveu aquela época custa a
entender. Eu sabia – todos sabíamos – de gente desaparecida, de gente presa e
torturada, de gente que vivia escondida ou fora do país.
Mas não desisti. Por
sugestão de frei Raimundo, procurei o oficial de gabinete do Reitor, que era conhecido
como filósofo. Tratava-se de um homenzinho dissimulado, inseguro, mas gentil.
Ouviu meu relato e, quando me referi à AESI,
ele de imediato se transformou na materialização de uma frase notável de
Voltaire: “tremia como um filósofo”. Suava, esfregava as mãos, prometeu
verificar. Voltei dois dias depois: verificara e nada poderia fazer. Seguia
tremendo, o filósofo.
O que se seguiu foi
ainda mais kafkiano. Falei com uma professora que poderia acionar um
funcionário de ministério em Brasília. Dias depois esse contato me telefonou
para dizer que levara o caso ao chefe do SNI, um certo general Figueiredo, que encerrara
a conversa com uma só frase: “trata-se de um ex-líder estudantil perigoso, que
é amigo de Carlos Prestes e que fez um estágio de dois anos na União
Soviética”.
Entrei em choque. Não havia
sido líder de coisa alguma, nunca vira Prestes pessoalmente e jamais saíra do
país.
Indignado, resolvi
seguir em frente e procurei falar com outras pessoas, nenhuma da UFPR,
pois alguns professores do departamento comemoravam meu afastamento, entre eles
um que levava recados ao ex-bedel, conhecido por ter participado da Operação OBAN
(Operação Bandeirante – órgão destinado ao combate da subversão e sabidamente
centro de torturas) em São Paulo.
Nada consegui, de porta
em porta, telefonando, reclamando, exigindo e correndo riscos. Era 1976, é bom
lembrar. Até que um dia um professor da UFPR, Antônio Lipski, me chamou para uma
conversa num estacionamento, estilo agente secreto. E me disse:
- Tenho um recado para
ti. O comandante militar da região mandou dizer que se continuar insistindo sobre
o contrato, manda te prender.
Esqueci o nome do tal
comandante e nem vou pesquisar. Sumiu do mapa juntamente com o ex-bedel e
aqueles que “tremiam como filósofos”.
Não havia o que fazer.
Ou melhor, havia. Fiz o que um escritor deve fazer. Escrevi o romance “Alegres memórias de um cadáver”, que
publiquei em 1979, com o qual ganhei o prêmio da União Brasileira de
Escritores/São Paulo, como o melhor romance editado no Brasil naquele ano. Ambientado
numa universidade, narra as peripécias de um cadáver insepulto. Cada um usa as
armas que tem. O romance esgotou uma edição em pouco tempo, saíram outras e
ainda circula por aí. É benquisto. Os milicos voltaram pra caserna.
Como resultado, passei 13
anos afastado da UFPR, impedido de lecionar.
Precisei reinventar meu trabalho, minha vida e minha cabeça. Mas a história não
termina aí e só pude entender o que acontecera alguns anos depois. Para tanto, foi
preciso voltar a 1964.
Voltando
a 1964
Em 1964 éramos um grupo
de jovens com pretensões intelectuais e vivíamos numa Blumenau mítica, pequena,
na qual nos divertíamos muito. Estudávamos no Colégio D. Pedro II, excelente
colégio público. Estudávamos no período noturno porque era preciso ganhar
nossos trocados durante o dia. Eu trabalhava num banco.
Dessa turma, faziam parte
o Sergio Faraco, que se tornou o grande contista gaúcho que todos conhecem; trabalhava
na Junta de Conciliação do Trabalho. Érico Max Müller Filho, cujo pai fora
líder integralista. Era o mais porra louca da turma, o primeiro sujeito que vi
fumando maconha. E foi também quem me apresentou à poesia de Rilke e de Walmir
Ayala. Guenter Leyen, que havia cursado um pedaço de arquitetura em Porto
Alegre e era um desenhista talentoso e um papo doidão e divertido. Pedro Luso
de Carvalho, hoje advogado em Porto Alegre. E um tipo chamado Laerte Tavares,
sabedor de poemas de Augusto dos Anjos, que declamava pelos bares por onde
andávamos.
A história dessa tribo
eu coloquei numa novela chamada Antes que
o teto desabe na qual se passam nossas estripulias juvenis antes que o
golpe de 64 desabasse sobre nossas cabeças.
Sérgio Faraco, o mais
velho da turma, era amigo de um dirigente do PC local, Francisco José Pereira,
escritor e figura notável, conhecido então como Chico Comunista. Era o Faraco
que nos trazia os primeiros fragmentos de marxismo, combustível para nossa
inquietação. Sonhávamos com um nordeste enfim livre, enfim desenvolvido,
queríamos fazer uma arte voltada para o povo, revolucionária e libertária, entre
outras fantasias.
Certo dia o Faraco surgiu
em minha casa esbaforido e, para evitar que minha mãe bisbilhotasse nossa
conversa, me levou para a rua. Tinha uma notícia bombástica: Chico Comuna o
indicara oficialmente – ou seja, com aprovação do PC local – para uma viagem à
URSS, onde faria um curso de um mês.
Ele não se continha de
tão nervoso e fomos até o hotel onde morava. Continuou agitadíssimo. Falava sem
parar, se perguntava como seria, dizia que era um sonho conhecer a Rússia, mas...
Mas havia, é claro, o medo. A Rússia era então a pátria mãe do comunismo, a
origem possível de uma revolução mundial que mudaria os destinos da humanidade.
Lá estavam alguns de seus ídolos e lá viveram escritores e revolucionários que
admirava. Ele não se aguentava. Tanto que, pelo que me contou no dia seguinte,
sofreu naquela noite uma violenta disenteria que o manteve em atividade até
amanhecer. Afinal, uma revolução não se faz sem sofrimento.
A viagem estava marcada
para o dia 30 de março. Faltavam poucos dias e, antes disso, ele precisava ir a
Florianópolis para se apresentar a um contato do PC local e receber o
passaporte. Como continuava nervoso, me convenceu a ir com ele, eu que tinha
família por lá. Fomos os dois, nos hospedamos na casa de meu tio Gersino Silva,
que era uma pessoa educadíssima, inteligente, um dos conversadores mais
agradáveis que conheci na vida. Farmacêutico, adorava jogos de carta e ouvia
uma coleção imensa de discos na primeira radiola que conheci. E era vereador.
Pela UDN. Conservador e, como era clichê na época, reacionário. Pilotava um
Austin pela cidade vestido com roupas muito sóbrias, e se reelegeu várias
vezes, tendo um reduto eleitoral fiel num recanto da ilha. Quando soube de
nossas ideias políticas, comentou:
- Vocês imaginam mudar
o mundo. Que ingenuidade. Mas são jovens, se entende.
Sergio e eu ficamos em
sua casa dois ou três dias. Na manhã seguinte à nossa chegada, levei o Sérgio a
um lugar onde ele faria um primeiro contato com um misterioso comunista que lhe
passou um endereço. E a recomendação: vá sozinho, sem seu amigo. Eu estava
fora. No outro dia, na hora marcada, levei o Sérgio às proximidades do morro da
Cruz, que ele subiu sozinho rumo ao encontro secreto.
O resto da história já
é conhecida. Sergio Faraco a transformou num belo e comovente romance chamado Lágrimas na chuva, no qual relata que
foi forçado, com a eclosão do golpe no Brasil, a ficar na URSS não o mês planejado,
mas um ano e meio. Assistiu cursos de doutrinação marxista, desgostou-se com o
país de seus sonhos, manifestou desejo, apesar dos riscos, de voltar ao Brasil,
tornou-se suspeito, pelo que foi interrogado, preso e internado em instituição
psiquiátrica. O modelo soviético típico.
Em
2010, outubro, Sérgio me enviou um e-mail dizendo o seguinte: “Tenho aqui
comigo documentos secretíssimos da 2ª Secção do III Exército, e num deles
consta que tu, vereador em Florianópolis, viajaste comigo para a
Guanabara”.
Eis a trapalhada
completa. Noutro registro, do qual me falou um professor da UFPR – que
confirmava o comentário do general Figueiredo – além de descrever as atividades
do perigosíssimo contista gaúcho, se diz que: “no final do mês de março de
1964, acompanhado do líder estudantil Roberto Gomes, filiado ao PC de Blumenau,
esteve em Florianópolis, ocasião em que se hospedaram na residência do vereador
comunista Gersino Silva”.
Terá sido essa ficha
que chegou às mãos do ex-bedel da AESI.
Algum asno do seu quilate nos transformou em filiados ao PC, me promoveu a
líder estudantil e elegeu meu doce e reacionário tio Gersino vereador
comunista. E do encontro com Prestes, com quem Sérgio realmente esteve, eu
teria participado, tornando-me amigo dele. Depois disso, eu teria passado dois
anos na URSS.
Eis como esse episódio
de 1964 explica o que me aconteceu em 1976, tornando evidente a estupidez
paranoica das ditaduras, a incompetência visceral de seus agentes, do general
ao ex-bedel, e o fato de que nós vivíamos enredados numa trama kafkiana. Eu fui
impedido de lecionar e Sérgio Faraco, além de preso e torturado na URSS,
foi preso e torturado ao chegar ao Brasil. Espancado por comunistas lá e por direitistas
aqui.
Por conta disso, passei
treze anos afastado de meu cargo de professor, conquistado por concurso público.
Só retornei à UFPR em 1989, com base na
Lei de Anistia e com o apoio de dois amigos, que venceram as tramoias
burocráticas e outras. Os professores Dante Romanó Jr., então vice-reitor – um
homem nobre – e Emmanuel Appel, velho amigo, um desses filósofos que não
tremem.
Hoje, quando se procura recuperar a memória
daqueles anos de ditadura, me parece importante mostrar que regimes ditatoriais
se baseiam em ignorância, estupidez, desumanidade, truculência e simples e pura
burrice.
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