terça-feira, 23 de novembro de 2010

A leitura sem fim


Como todos aqueles que um dia foram fisgados pelo vício da leitura – as razões e as motivações são as mais diversas possíveis, mas o resultado é um só – eu também coloquei na cabeça que deveria ler todos os livros do mundo. Aos treze anos, quando a febre começou, compreende-se. Nessa idade podemos tudo e teremos tempo para tudo. O problema é que sabemos pouco. Uma das coisas que não sabemos: o número de livros existentes no mundo.
Muitos anos depois, quando eu já havia me livrado da agonia em ler “todos os livros do mundo”, encontrei em uma entrevista de Wilson Martins a mesma tara leitora. Disse o Wilson que seu projeto de leitor iniciante era ler todos os livros existentes e foi em frente até descobrir que isso era impossível. É bem verdade que ele acabou lendo muito mais do que todos nós juntos, simples mortais mais ou menos preguiçosos – o homem era uma fera nesse ofício de leitor, o que sempre me deixou com uma enorme inveja.
O que importa é que, tendo passado a vida com o nariz enfiado no meio de livros, nem por isso vi diminuir sensivelmente duas coisas: a quantidade que restava a ler e minha sensação de que, por mais esforço que fizesse, não conseguiria diminuir os domínios sobre os quais eu continuava tendo uma robusta ignorância.
Os livros que não li, portanto, são infindáveis, além de aumentarem a cada dia, pois sempre há quem escreva novos livros – aliás, em certos casos o número de autores me parece maior do que o número de leitores. Essa equação que descreve os livros que não li, portanto, se assemelha àqueles problemas matemáticos nos quais surge um número qualquer que jamais podemos limitar: ele cresce sempre e passa a ser considerado infinito. Um infinito numérico, não o infinito atrás do qual andam os filósofos, os teólogos, os místicos e os astrofísicos.
Foi quando cheguei a nova etapa como leitor. Percebi que existiam, além dos livros lidos e dos livros que não li, uma quantidade infinita de livros que jamais lerei. Trata-se de início de uma impossibilidade física – pela quantidade infinita – mas que se associa a um fator existencial: o tempo. Ou seja, o tempo que cabe a cada um de nós viver. Foi quando lembrei, vejam só, do famoso e divertido play-boy Jorginho Guinle, que tinha uma coleção assombrosa de discos (LPs 33 rotações) com tudo que havia de melhor no mundo do jazz. Quando li uma descrição do que havia nessa discoteca, fiquei pasmo. Fui assaltado por um desejo de pedir licença para ouvi-la do começo ao fim. Nova decepção. O próprio Jorginho confessou em entrevista ter feito umas contas esquisitas. Calculou o número de discos que possuía, multiplicou pelo número médio de canções em cada um deles, em seguida multiplicou pelo tempo médio de duração de cada faixa – concluiu que não lhe restava tempo de vida para ouvir tudo aquilo, mesmo que não fizesse outra coisa. Se bem me lembro, Jorginho doou sua discoteca, ou a maior parte dela, e ficou com aqueles discos que considerava essenciais. Era o possível. Era o tempo que lhe restava.
Eis como se aprende que a vida é limitação e frustração contínuas. O mesmo que vale para os discos, vale para os livros, os lugares, as pessoas, os filmes, os poemas, os vinhos – tudo, enfim. A humildade é algo que aprendemos à custa de pancadas que o infindável de tudo e os limites do tempo nos dão no lombo.
Resta, portanto, selecionar. Aos poucos, a biblioteca que acumulamos vai nos parecendo demasiada. Lemos tudo ou quase tudo, mas o melhor seria escolher aqueles que realmente são nossos preferidos. Aqueles que relemos – ao menos é o que faço – de forma meio aleatória, numa espécie de vagabundagem literária. Pego o livro, releio uns trechos sem pressa, saboreando cada palavra e parágrafo, e depois devolvo o volume à prateleira. Voltarei a ele um dia. Se voltar.
Mas, como a sede de infinito – não mais no sentido numérico – parece não nos abandonar, volta e meia me assalta a ilusão de que, entre tantos livros, deve haver algum que me proporcione o prazer que me causou outra categoria de livros: aqueles que caíram em minhas mãos na hora certa. É uma experiência única: nós e o mundo jamais seremos os mesmos. O que reacende a esperança.
É quando recomeço.

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