sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Meu primeiro filme pornô


          
          Devo a um capitão do exército – que era viado, como chamávamos na época – a sessão de cinema em que vi o primeiro filme de sacanagem, também nesse caso como chamávamos na época.
Me explico, para evitar mal entendidos.
Estávamos lá na frente do Cine Blumenau, banzando de um lado para outro, eu e um amigo, Léo, querendo assistir a um filme proibido para menores. Tínhamos dezesseis anos e entrar numa sessão de filme proibido era uma operação que exigia muita habilidade, algum prestígio político junto ao porteiro, além de uma capacidade digna do actors studio de encenar vários despistes. O truque era não pressionar o porteiro. Depois, ficar por ali, aguardando a hora exata, fazendo papel de figurante invisível.
Ocorre que na Blumenau da época todos conheciam todos e muitas vezes minhas estratégias foram por água abaixo quando surgia alguém que me apontava, às gargalhadas:
- Olha ali o filho do seu João querendo assistir filme proibido!
Era o que bastava. Dedado, só me restava bater em retirada e sumir pela rua XV, coberto por uma salva de chacotas. Além disso, e era o pior, o flagra deixava o porteiro furioso, pois colocava sob desconfiança sua missão policialesca de barrar menores. Com isso, minhas chances de entrar numa sessão proibida nas duas ou três próximas semanas estavam perdidas.
Pois estávamos ali, escondidos por detrás de colunas, encostados nas paredes laterais, vigiando se algum alcagueta não se aproximava, quando um conhecido veio nos trazer o convite:
- Querem assistir a um filme de sacanagem?
Queríamos, é claro, mas de pronto fizemos a primeira pergunta:
- Quanto custa?
- Nada. De graça.
- E onde vai ser?
O sujeito colocou um dedo sobre os lábios exigindo silêncio e fez um sinal para que o acompanhássemos. Atravessamos a rua, agora no papel de agente secreto incógnito, e, logo depois do Bar Benthien que por ali havia, entramos por uma porta misteriosa e descemos uma escada estreita e escura. Chegamos a um porão que cheirava mal e estava lotado pela silhueta de uma pequena multidão febril.
Um homem careca se aproximou, nos encarando com duas sobrancelhas hirtas e eu pensei: pronto, vai nos colocar para fora, somos menores. Nada disso. O homem, depois de nos examinar, disse, como quem dá uma ordem:
- Arranjem um lugar e não atrapalhem quem está atrás.
Quando o homem se afastou para continuar em sua missão de organizar a plateia, o sujeito que nos levou àquele covil murmurou:
- É ele.
- Ele?
- Ele é quem passa o filme.
Procurei pelo homem, mas ele havia sumido na escuridão.
- Mas quem é ele? perguntei.
- Um capitão do exército. Viado.
No meio da plateia havia uma máquina de projeção, já piscando suas luzes, colocada em cima de uma banqueta de bar, dessas de perna alta. Era uma 16 milímetros que por enquanto só jogava, num lençol estendido na parede em frente, uns clarões de luz, riscos, cruzes, números, traços desencontrados.
O tal capitão surgiu então diante do lençol e pediu a todos o máximo de silêncio. Nada de bagunça durante a projeção do filme. A coisa era secreta. E anunciou para a próxima quinta-feira um novo filme.
A verdade é que do filme a que assistimos me lembro de quase nada. Sei que era uma história que envolvia uma bela mulher loira, de generosos seios, que já na primeira cena aparecia vestindo uma camisola transparente. Estava enfurecida, pois queria tomar banho, mas, por mais que esbofeteasse a torneira e o chuveiro, a água não saía. Andava de um lado para outro e todos da plateia estavam boquiabertos com aquele espetáculo de beleza, de pernas, de quadril rebolativo, exercícios de se abaixar para apanhar o sabonete, de se levantar para acionar o chuveiro, quando ela afinal retirou de um canto um aparelho telefônico. Da época: preto, grande, com um fio imensamente longo. Discou com alguma fúria uma sucessão de números que nos pareceu gigantesca – na cidade, os telefones tinham então quatro dígitos. Era um filme americano, portanto. Como previsto: ela chamou o encanador. Num filme desses, saberíamos mais tarde, sempre há um encanador. Esse, cumprindo o destino da sua espécie, surgiu numa camiseta justa, músculos saindo por todos os lados, fumando um cigarro malandro, uma caixa de ferramentas na mão, enquanto a ferramenta principal avolumava o jeans.
Bom, o resto não preciso contar, já que é a mesma história de sempre. Os filmes pornôs são todos iguais.
O que era diferente, no caso, era o capitão. Ele usava aquele expediente para conquistar a rapaziada e, dizem, ao final do filme sumia acompanhado rumo ao andar de cima, onde tinha um refúgio ou algo assim.
Foi a primeira e a última vez que assisti a um filme naquele porão.
Cerca de ano e meio depois, estávamos enfileirados num galpão do 23º. Regimento de Infantaria, para o exame de saúde a que eram submetidos os possíveis recrutas. Todos nus. Não fazia frio, mas era como se fizesse. Aquilo de ficar pelado diante de uma tropa não era nada agradável. Uns, tímidos, pareciam palitos de fósforo: magros, braços grudados no corpo, o rosto fervendo em vergonha. Alguns disfarçavam o incômodo contando piadas, rindo da bunda dos outros e, sobretudo, do Badalo.
Explico. Badalo era o apelido de um mulato baixinho, forte, com quem jogávamos futebol no campo do Palmeiras. Depois do jogo, íamos ao trecho de rio chamado Poço da Moça, onde tomávamos banho, todos pelados. Daí que surgiu o apelido, aplicado por conta do instrumento inacreditavelmente imenso que tinha entre as pernas, mesmo quando em repouso e fatigado após as correrias de um jogo de futebol. De início, Badalo se irritou com o apelido; depois, desligou. Com o tempo, ninguém ligava mais para o badalo do Badalo.
Não era o que acontecia ali naquela fileira de recrutas. Houve alvoroço. Havia quem o apontasse, entre risadas, e logo a coisa virou bagunça quando alguém pretendeu organizar a fila pela ordem decrescente dos, digamos, badalos.
A bagunça foi interrompida pela entrada de alguns milicos. Dois deles ocuparam uma mesa e sobre ela distribuíram papéis e pastas e pediram silêncio. Aos berros, é claro.
Ficamos em silêncio.
Outros dois milicos, que não carregavam papéis nem pastas, vieram em seguida e se colocaram diante de nós. Tinham ares de quem ia nos passar uma descompostura ou nos dar uma ordem unida. Ao invés disso, um deles fez um sinal cabalístico para os dois que estavam na mesa. Começou a chamada dos recrutas, que se aproximavam e eram examinados, respondendo a algumas questões.
Foi só então que um dos milicos nos chamou a atenção.
- É ele, sussurrou o Léo, a meu lado.
- Ele quem?
- O capitão. O viado.
Pois lá estava, disfarçado por esplêndido uniforme, o mesmo capitão que nos proporcionara a primeira sessão de filme de sacanagem. Com as mãos nas costas, sisudo, ele nos examinava com olhares detalhistas. O outro milico acompanhava seus gestos e andanças, como se fosse um ajudante de ordens.
Ficamos congelados. Que diabos fazia aquele sujeito ali?
Enquanto os recrutas eram chamados à mesa, o capitão, acompanhado de seu ajudante de ordens, aproximou-se para examinar a fila de recrutas com ares de especialista. Éramos examinados pelas costas, pela frente. Fazia comentários:
- Veja esse rapaz. Físico de atleta, mas tem um problema na coluna.
O ajudante balançava a cabeça.
- O curioso, disse o capitão, são as diferenças de desenvolvimento hormonal.
O ajudante nos varreu com um olhar inquieto, como se não soubesse onde localizar os sinais de tais diferenças.
- Veja, fez o capitão.
E então passou a examinar cada um de nós, fazendo comentários doutos a respeito de nossos dotes físicos. Para tanto, se aproximava, percorria o nosso corpo com um dedo inquieto, dizendo coisas assim: alguma gordura em excesso, bons músculos, quadril firme. Se alguém acompanhava com o olhar o percurso do seu dedo, ele ordenava:
- Queixo para o alto, rapaz!
Olhávamos para o teto.
A partir daí ele passou a dissertar a respeito do desenvolvimento das gônadas. Notou que umas desciam mais do que as outras, umas eram maiores do que as outras, umas já estavam quase adultas e, outras, infantis. Tudo isso com ares científicos e, para provar seus argumentos, ele deslocava com o dedo os badalos da turma, para deixar à mostra as gônadas. E lá foi ele, de badalo em badalo, emitindo apreciações eruditas, examinando mais detalhadamente alguns, deixando de lado outros que não teriam, talvez, nenhum interesse metodológico. Alguns badalos ele pinçava com dois dedos, outros apenas empurrava para o lado com um só dedo.
Quando chegou a vez do Badalo, o capitão, como se não estivesse atento a ele desde o começo de seu exercício científico, fez um ar de surpresa, chamou o ajudante de ordens mais para perto e se deteve num longo e demorado exame, com dois dedos em pinça revirando o poderoso instrumento de nosso amigo. Segurou as poderosas gônadas na mão enquanto dissertava ao ajudante sobre as diferenças anatômicas do Badalo em comparação com os demais que ali estavam.
- Notável desenvolvimento, disse ele.
E perguntou:
- Como é seu nome, meu rapaz?
Badalo disse um nome que nenhum de nós conhecia, pois para nós ele era apenas o Badalo.
- Interessante, fez o capitão, afastando-se com seu ajudante para a mesa onde os outros dois seguiam entrevistando os recrutas.
Léo sussurrou:
- Ele não tira os olhos do Badalo.
Me controlei para não rir e desviei o olhar para umas janelas altas que havia no galpão. Lá fora observei um céu claro, um sol forte e nenhum vento.
Não sei quanto ao Badalo. Se não foi reprovado por outras razões alheias ao seu notável desenvolvimento peniano, terá enfrentado problemitas, como disse Érico Veríssimo em Solo de Clarineta ao ser assediado por um inglês bêbado numa viagem de trem. Quanto a mim, fui salvo por um decreto do então presidente da república, Jânio Quadros, aquele das vassouras e dos bilhetinhos, que liberou do serviço militar os recrutas que no mesmo ano do alistamento estivessem prestando vestibular e residissem em cidades onde não havia uma coisa chamada CPOR.
Como se vê, é possível ter gratidão por criaturas as mais distintas e abstrusas e por distintos motivos, muitos deles – os motivos, digo – bastante egoístas e pouco sociais. Ao capitão viado fiquei devendo o primeiro filme pornô. E fui obrigado a preservar uma gratidão comedida e histriônica pelo Jânio.
Quanto ao Badalo, não sei como saiu dessa.



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