Me explico, para evitar mal entendidos.
Estávamos lá na frente do Cine Blumenau, banzando de um lado para outro,
eu e um amigo, Léo, querendo assistir a um filme proibido para menores.
Tínhamos dezesseis anos e entrar numa sessão de filme proibido era uma operação
que exigia muita habilidade, algum prestígio político junto ao porteiro, além
de uma capacidade digna do actors studio
de encenar vários despistes. O truque era não pressionar o porteiro. Depois,
ficar por ali, aguardando a hora exata, fazendo papel de figurante invisível.
Ocorre que na Blumenau da época todos conheciam todos e muitas vezes
minhas estratégias foram por água abaixo quando surgia alguém que me apontava,
às gargalhadas:
- Olha ali o filho do seu João querendo assistir filme proibido!
Era o que bastava. Dedado, só me restava bater em retirada e sumir pela
rua XV, coberto por uma salva de chacotas. Além disso, e era o pior, o flagra
deixava o porteiro furioso, pois colocava sob desconfiança sua missão
policialesca de barrar menores. Com isso, minhas chances de entrar numa sessão
proibida nas duas ou três próximas semanas estavam perdidas.
Pois estávamos ali, escondidos por detrás de colunas, encostados nas
paredes laterais, vigiando se algum alcagueta não se aproximava, quando um
conhecido veio nos trazer o convite:
- Querem assistir a um filme de sacanagem?
Queríamos, é claro, mas de pronto fizemos a primeira pergunta:
- Quanto custa?
- Nada. De graça.
- E onde vai ser?
O sujeito colocou um dedo sobre os lábios exigindo silêncio e fez um
sinal para que o acompanhássemos. Atravessamos a rua, agora no papel de agente
secreto incógnito, e, logo depois do Bar Benthien que por ali havia, entramos
por uma porta misteriosa e descemos uma escada estreita e escura. Chegamos a um
porão que cheirava mal e estava lotado pela silhueta de uma pequena multidão
febril.
Um homem careca se aproximou, nos encarando com duas sobrancelhas hirtas
e eu pensei: pronto, vai nos colocar para fora, somos menores. Nada disso. O
homem, depois de nos examinar, disse, como quem dá uma ordem:
- Arranjem um lugar e não atrapalhem quem está atrás.
Quando o homem se afastou para continuar em sua missão de organizar a
plateia, o sujeito que nos levou àquele covil murmurou:
- É ele.
- Ele?
- Ele é quem passa o filme.
Procurei pelo homem, mas ele havia sumido na escuridão.
- Mas quem é ele? perguntei.
- Um capitão do exército. Viado.
No meio da plateia havia uma máquina de projeção, já piscando suas luzes,
colocada em cima de uma banqueta de bar, dessas de perna alta. Era uma 16
milímetros que por enquanto só jogava, num lençol estendido na parede em
frente, uns clarões de luz, riscos, cruzes, números, traços desencontrados.
O tal capitão surgiu então diante do lençol e pediu a todos o máximo de
silêncio. Nada de bagunça durante a projeção do filme. A coisa era secreta. E
anunciou para a próxima quinta-feira um novo filme.
A verdade é que do filme a que assistimos me lembro de quase nada. Sei
que era uma história que envolvia uma bela mulher loira, de generosos seios,
que já na primeira cena aparecia vestindo uma camisola transparente. Estava
enfurecida, pois queria tomar banho, mas, por mais que esbofeteasse a torneira
e o chuveiro, a água não saía. Andava de um lado para outro e todos da plateia
estavam boquiabertos com aquele espetáculo de beleza, de pernas, de quadril
rebolativo, exercícios de se abaixar para apanhar o sabonete, de se levantar
para acionar o chuveiro, quando ela afinal retirou de um canto um aparelho
telefônico. Da época: preto, grande, com um fio imensamente longo. Discou com
alguma fúria uma sucessão de números que nos pareceu gigantesca – na cidade, os
telefones tinham então quatro dígitos. Era um filme americano, portanto. Como
previsto: ela chamou o encanador. Num filme desses, saberíamos mais tarde,
sempre há um encanador. Esse, cumprindo o destino da sua espécie, surgiu numa
camiseta justa, músculos saindo por todos os lados, fumando um cigarro
malandro, uma caixa de ferramentas na mão, enquanto a ferramenta principal
avolumava o jeans.
Bom, o resto não preciso contar, já que é a mesma história de sempre. Os
filmes pornôs são todos iguais.
O que era diferente, no caso, era o capitão. Ele usava aquele expediente
para conquistar a rapaziada e, dizem, ao final do filme sumia acompanhado rumo
ao andar de cima, onde tinha um refúgio ou algo assim.
Foi a primeira e a última vez que assisti a um filme naquele porão.
Cerca de ano e meio depois, estávamos enfileirados num galpão do 23º.
Regimento de Infantaria, para o exame de saúde a que eram submetidos os
possíveis recrutas. Todos nus. Não fazia frio, mas era como se fizesse. Aquilo
de ficar pelado diante de uma tropa não era nada agradável. Uns, tímidos,
pareciam palitos de fósforo: magros, braços grudados no corpo, o rosto fervendo
em vergonha. Alguns disfarçavam o incômodo contando piadas, rindo da bunda dos outros
e, sobretudo, do Badalo.
Explico. Badalo era o apelido de um mulato baixinho, forte, com quem
jogávamos futebol no campo do Palmeiras. Depois do jogo, íamos ao trecho de rio
chamado Poço da Moça, onde tomávamos banho, todos pelados. Daí que surgiu o
apelido, aplicado por conta do instrumento inacreditavelmente imenso que tinha
entre as pernas, mesmo quando em repouso e fatigado após as correrias de um
jogo de futebol. De início, Badalo se irritou com o apelido; depois, desligou.
Com o tempo, ninguém ligava mais para o badalo do Badalo.
Não era o que acontecia ali naquela fileira de recrutas. Houve alvoroço.
Havia quem o apontasse, entre risadas, e logo a coisa virou bagunça quando
alguém pretendeu organizar a fila pela ordem decrescente dos, digamos, badalos.
A bagunça foi interrompida pela entrada de alguns milicos. Dois deles
ocuparam uma mesa e sobre ela distribuíram papéis e pastas e pediram silêncio. Aos berros, é claro.
Ficamos em silêncio.
Outros dois milicos, que não carregavam papéis nem pastas, vieram em
seguida e se colocaram diante de nós. Tinham ares de quem ia nos passar uma
descompostura ou nos dar uma ordem unida. Ao invés disso, um deles fez um sinal
cabalístico para os dois que estavam na mesa. Começou a chamada dos recrutas, que
se aproximavam e eram examinados, respondendo a algumas questões.
Foi só então que um dos milicos nos chamou a atenção.
- É ele, sussurrou o Léo, a meu lado.
- Ele quem?
- O capitão. O viado.
Pois lá estava, disfarçado por esplêndido uniforme, o mesmo capitão que
nos proporcionara a primeira sessão de filme de sacanagem. Com as mãos nas
costas, sisudo, ele nos examinava com olhares detalhistas. O outro milico acompanhava
seus gestos e andanças, como se fosse um ajudante de ordens.
Ficamos congelados. Que diabos fazia aquele sujeito ali?
Enquanto os recrutas eram chamados à mesa, o capitão, acompanhado de seu
ajudante de ordens, aproximou-se para examinar a fila de recrutas com ares de
especialista. Éramos examinados pelas costas, pela frente. Fazia comentários:
- Veja esse rapaz. Físico de atleta, mas tem um problema na coluna.
O ajudante balançava a cabeça.
- O curioso, disse o capitão, são as diferenças de desenvolvimento
hormonal.
O ajudante nos varreu com um olhar inquieto, como se não soubesse onde localizar
os sinais de tais diferenças.
- Veja, fez o capitão.
E então passou a examinar cada um de nós, fazendo comentários doutos a
respeito de nossos dotes físicos. Para tanto, se aproximava, percorria o nosso
corpo com um dedo inquieto, dizendo coisas assim: alguma gordura em excesso,
bons músculos, quadril firme. Se alguém acompanhava com o olhar o percurso do
seu dedo, ele ordenava:
- Queixo para o alto, rapaz!
Olhávamos para o teto.
A partir daí ele passou a dissertar a respeito do desenvolvimento das
gônadas. Notou que umas desciam mais do que as outras, umas eram maiores do que
as outras, umas já estavam quase adultas e, outras, infantis. Tudo isso com
ares científicos e, para provar seus argumentos, ele deslocava com o dedo os
badalos da turma, para deixar à mostra as gônadas. E lá foi ele, de badalo em
badalo, emitindo apreciações eruditas, examinando mais detalhadamente alguns,
deixando de lado outros que não teriam, talvez, nenhum interesse metodológico.
Alguns badalos ele pinçava com dois dedos, outros apenas empurrava para o lado
com um só dedo.
Quando chegou a vez do Badalo, o capitão, como se não estivesse atento a
ele desde o começo de seu exercício científico, fez um ar de surpresa, chamou o
ajudante de ordens mais para perto e se deteve num longo e demorado exame, com
dois dedos em pinça revirando o poderoso instrumento de nosso amigo. Segurou as
poderosas gônadas na mão enquanto dissertava ao ajudante sobre as diferenças
anatômicas do Badalo em comparação com os demais que ali estavam.
- Notável desenvolvimento, disse ele.
E perguntou:
- Como é seu nome, meu rapaz?
Badalo disse um nome que nenhum de nós conhecia, pois para nós ele era
apenas o Badalo.
- Interessante, fez o capitão, afastando-se com seu ajudante para a mesa
onde os outros dois seguiam entrevistando os recrutas.
Léo sussurrou:
- Ele não tira os olhos do Badalo.
Me controlei para não rir e desviei o olhar para umas janelas altas que
havia no galpão. Lá fora observei um céu claro, um sol forte e nenhum vento.
Não sei quanto ao Badalo. Se não foi reprovado por outras razões alheias
ao seu notável desenvolvimento peniano, terá enfrentado problemitas, como disse
Érico Veríssimo em Solo de Clarineta
ao ser assediado por um inglês bêbado numa viagem de trem. Quanto a mim, fui
salvo por um decreto do então presidente da república, Jânio Quadros, aquele
das vassouras e dos bilhetinhos, que liberou do serviço militar os recrutas que
no mesmo ano do alistamento estivessem prestando vestibular e residissem em
cidades onde não havia uma coisa chamada CPOR.
Como se vê, é possível ter gratidão por criaturas as mais distintas e
abstrusas e por distintos motivos, muitos deles – os motivos, digo – bastante
egoístas e pouco sociais. Ao capitão viado fiquei devendo o primeiro filme
pornô. E fui obrigado a preservar uma gratidão comedida e histriônica pelo
Jânio.
Quanto ao Badalo, não sei como saiu dessa.
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