A rotina rolava calma
no boteco do cego Tião. As mesmas moscas de sempre reunidas no fio elétrico de
onde pende uma lâmpada cansada. O final mortiço de uma tarde quente. Tudo em
quietude até que o doutor Pamphilo Assumpção Datavênia, o causídico da Vila, venceu
a embriaguez, colocou-se de pé e soltou o vozeirão:
- Quanto às mulheres...
Uma pausa solene e
tensa tomou conta do boteco. Silêncio cheio de energia. Resultado do espanto causado
por tanta habilidade retórica ou pela oscilação da figura magrela de Pamphilo lutando
contra algumas doses a mais de uísque.
Ele olhou em volta,
examinou cada um dos presentes e emendou:
- ... é preciso aceitar
que só acreditam no inacreditável.
Deu-se um monumental
silêncio respeitoso. Era um gênio.
Laurinho Telefone
largou o copo sobre a mesa. Nezinho deteve o cigarro no ar, a cinza ameaçando
cair no sanduíche de mortadela. Carlão Borracheiro não entendeu o que se
passava, mas fez cara de quem estava entendendo. Todos aplaudiram.
Ao contrário do que alguns
podem pensar, o espanto não decorria do aparente paradoxo da frase, nem da
referência às mulheres, sendo que tudo que se diz sobre elas costuma gerar
polêmica. O que intrigou a distinta clientela do boteco foi o início da frase, no
qual aquele “quanto” parecia indicar que alguma coisa fora dita anteriormente e
que agora seria afinal revelada. Que truque retórico seria aquele?
Vou me permitir uma
pequena divagação, embora essa crônica, em tempos eletrônicos, deva ter apenas duas
páginas ou umas 50 linhas, o que não permite divagações demasiadas. Mas é
necessário. Ocorre que Pamphilo é conhecido não apenas como o advogado sem
diploma – ou com diploma falsificado, há controvérsias – que defende causas
justas ou injustas na Vila, mas também como um profundo sabedor das artes da
retórica e das artimanhas das mulheres. Ou seja: o bicho ia pegar.
Nezinho bateu as cinzas
do cigarro no chão. Cego Tião rosqueou o vidro de rolmops, velho hábito em
momentos de nervosismo. E Laurinho provocou:
- Diga de lá,
magistrado.
Havia naquele tratamento
de magistrado alguma coisa que incomodou Pamphilo. Gostava de ironias, mas se
chateava quando bordejavam suas virtudes jurídicas. O que exigiria outra
divagação, essa sobre as suscetibilidades humanas, mesmo em homens inteligentes
como o causídico da Vila, mas não vou me desviar.
- Você chega em casa e
ela ataca: “Demorou demais. Onde esteve?” Você explica: encontrei um velho
amigo na farmácia, o Nunes. Ficamos conversando, fomos tomar um café e perdi a
noção do tempo. O Nunes é um grande papo.
E, olhando cada um dos
habitantes do boteco, Pamphilo indagou – note-se que ele jamais pergunta. Ele indaga
ou argui. Afinal, é um magistrado.
- Qual a reação da
mulher?
A resposta da turma foi
unânime:
- Não acreditou.
- Perfeito. E passou o
dia azucrinando: onde andou? quem encontrou?
Pamphilo virou o resto do
conhaque e seguiu:
- Agora, se o prezado
disser que desconfiava ter sido abduzido em plena Praça Tiradentes, quando
apareceu à sua frente um sujeito imenso, andando em pernas de pau e que mais
tarde se descobriria ser um anão minúsculo. O gigante jogou em sua direção uma
luz verde saída de uma lanterna. Foi só isso. Você não lembra o que aconteceu
nas duas horas seguintes. Amnésia total.
Suspense. Pamphilo lançou
de novo a mesma pergunta:
- Qual a reação dela?
- Acreditou! – gritaram
todos.
Pamphilo bateu palmas:
- Acreditou e, considerada
a luz verde, disse que o anão seria de Marte, onde os homenzinhos são verdes e
abduzem tipos distraídos que atravessam praças.
Dito isso, vencido pelo
cansaço e pelo conhaque, Pamphilo sentou-se, voltou ao mutismo que o dominara
até então e nada mais disse e nem lhe foi perguntado. Fazia sentido, pensaram todos,
sem questionar se estavam acreditando no acreditável ou no inacreditável. O
resumo foi feito por Laurinho:
- Elas é que são
inacreditáveis.
Saudade do boteco do cego Tião e dos seus frequentadores habituais ou eventuais. Preciso ver como estão as coisas no Bar do Mudinho. Pode haver novidades.
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