É um recurso frequente em obras de
ficção. Um personagem pira, o que lhe permite dizer verdades que outros não podem
enunciar. A Loucura, nesse caso – não confundir com a noção psiquiátrica –
consiste em uma ruptura com as ideias aceitas e bem comportadas, o senso comum
acomodatício, o bem pensar politicamente correto e medíocre. Trata-se da Loucura
elogiada por Erasmo de Rotterdam.
O personagem que enlouquece – seja o
louco genial chamado Quixote ou o louco torturado chamado Hamlet – atravessa
uma fronteira e revira o mundo pelo avesso. À maneira de Viramundo, criatura
inventada por Fernando Sabino, por exemplo.
É o que ocorre no romance Incidente em Antares de Érico Veríssimo. Os mortos retornam à vida causando enorme
reboliço, pois, livres de qualquer temor por já estarem mortos – no Brasil de
1971, que vivia sob tortura e repressão – podem dizer o que pensam, sem as hipocrisias
com que estavam obrigados a conviver.
Essa é a Loucura que permite que a
verdade seja dita.
Não sei se me explico ou se exagero.
Mas as recentes declarações do presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim
Barbosa, me fizeram pensar nisso. Disse Barbosa que temos partidos de
“mentirinha”. E arrematou: “não nos identificamos com partidos que nos
representam no Congresso, nem tampouco esses partidos e seus líderes têm
interesse em ter consistência programática ou ideológica. Querem o poder pelo
poder”.
É uma declaração límpida e óbvia.
Aliás, a verdade – diria o escritor inglês Chersterton – tem essa
característica: é óbvia. Sabemos que nossos partidos são de mentirinha, que não
têm consistência conceitual, nem projetos programáticos ou coerência
ideológica. Querem o poder pelo poder, pois, embora críticos na oposição, são
maleáveis quando no poder. Velha verdade brasileira que, no Império, era
encenada por luzias e os saquaremas. “Nada há mais parecido com um
saquarema do que um luzia no poder”, dizia o político pernambucano Holanda
Cavalcanti. Nos dias de hoje, os leitores sabem quem encena essa farsa.
O atual governo reúne apoios os
mais conflitantes, com 39 ministérios destinados a acomodar grupos, interesses,
partidos de aluguel e políticos oportunistas. O que gera o “toma lá dá cá” a
que chamam de “política”. A votação recente da PEC dos Portos mostrou isso com
clareza.
Portanto, Joaquim Barbosa, ao
“enlouquecer”, disse o óbvio, ou seja, a verdade. O que desencadeou reação
furiosa de políticos engomados. Segundo um deles as declarações de Barbosa seriam
um “grande equívoco” de “alguém que não tem apreço pela democracia”. Outro afirmou que “a declaração foi desrespeitosa
e não contribui para a harmonia constitucional”.
Infelizmente, esse momento de Loucura
de Barbosa foi seguido por um deslize e o imbróglio terminou em tom menor. Uma nota
do STF explicou que o seu presidente, ao dizer o que disse, estaria fazendo uma
“especulação acadêmica” que não visava criticar o legislativo.
Barbosa recuou. Não esteve à altura
de seu surto de Loucura. É uma pena. O Brasil continuará o mesmo.
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